David Vinicius do Nascimento Maranhão
Nos últimos anos, o uso de sociedades no exterior — as chamadas offshores — deixou de ser um tema restrito a grandes corporações e passou a integrar a estratégia patrimonial de inúmeros investidores brasileiros. Essas estruturas permitem organizar investimentos, facilitar a sucessão familiar e diversificar o patrimônio em diferentes moedas e jurisdições. No entanto, com a entrada em vigor da Lei nº 14.754/2023, o cenário mudou radicalmente e trouxe uma questão central: é constitucional tributar rendimentos que nunca chegaram ao bolso do contribuinte?
Tradicionalmente, o Imposto de Renda da Pessoa Física sempre foi regido pelo regime de caixa, ou seja, só se tributa quando há efetivo recebimento. A nova lei rompe com essa lógica ao impor a tributação automática, em 31 de dezembro de cada ano, sobre lucros apurados em sociedades controladas no exterior e até sobre a mera valorização contábil de ativos. Isso significa que, mesmo sem dividendos ou qualquer entrada de recursos, o investidor brasileiro passa a ser obrigado a recolher imposto sobre uma riqueza que não se materializou.
O problema se agrava quando lembramos que o artigo 43 do Código Tributário Nacional define renda como “aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica”. Sem entrada efetiva de recursos ou direito exigível ao crédito, não haveria, em tese, fato gerador para o imposto. Ao tributar expectativas de ganhos, o Estado cria uma ficção de renda, em desacordo com o princípio da capacidade contributiva previsto na Constituição.
O Judiciário já começou a se manifestar sobre a questão. Em setembro de 2025, a Justiça Federal de Ribeirão Preto afastou a aplicação da Lei nº 14.754/2023 em relação à tributação automática sobre a valorização contábil de ações em offshores, reconhecendo que não havia acréscimo patrimonial real. O fundamento foi claro: não existe renda tributável sem realização econômica efetiva.
Outras ações tramitam no TRF3 e em diferentes varas federais, contestando a tributação de lucros não distribuídos, a incidência sobre variação cambial e a forma como a Receita Federal tem enquadrado operações de redução de capital como rendimento, em vez de ganho de capital. Essa última interpretação pode elevar a carga tributária de até 22,5% para 27,5%, gerando insegurança e divergência entre contribuintes e Fisco.
Para o investidor pessoa física, o impacto é direto: há perda de liquidez, pois o imposto deve ser pago mesmo sem entrada de caixa; há insegurança, já que a lei se afasta da tradição do regime de caixa; e há risco de dupla tributação, considerando que os lucros ainda podem ser tributados no momento de sua efetiva distribuição.
Essa sistemática cria um ambiente de insegurança jurídica, capaz de desestimular investimentos internacionais legítimos e até de comprometer planejamentos sucessórios já em andamento. Para além da questão tributária, há reflexos sobre a competitividade internacional do investidor brasileiro, que passa a enfrentar custos mais elevados que concorrentes em outros países.
Outro ponto sensível é a redução de capital em offshores, forma historicamente usada para remeter recursos ao Brasil com tributação mais equilibrada, calculada como ganho de capital. A Receita Federal, entretanto, vem autuando contribuintes sob o argumento de que a operação deve ser tratada como rendimento, sujeita ao carnê-leão à alíquota de até 27,5%.
Especialistas apontam que esse entendimento colide com a própria redação da Lei nº 14.754/2023, que prevê a tributação da redução de capital como ganho de capital, inclusive considerando a variação cambial. A divergência revela não apenas um embate técnico, mas também uma oportunidade de contestação judicial frente à postura do Fisco.
A lei trouxe ainda instrumentos como a atualização de bens e direitos para valor de mercado com tributação reduzida de 8%, válida até maio de 2024, e o chamado regime de transparência fiscal, em que o contribuinte opta por declarar diretamente os ativos da offshore. Essas opções podem ser vantajosas em determinados cenários, mas também carregam riscos: no regime transparente, por exemplo, o investidor pode ser tributado em até 27,5% sobre receitas de locação de imóveis, sem possibilidade de dedução de despesas operacionais.
A questão que se coloca é simples, mas poderosa para atrair a atenção de quem investe no exterior: pode o Estado cobrar imposto sobre uma renda inexistente? Essa é a problemática central que hoje mobiliza investidores, advogados tributaristas e o próprio Judiciário. A resposta tem o potencial de definir o futuro da política tributária brasileira e o grau de segurança de investir em estruturas internacionais.
A Lei nº 14.754/2023 foi apresentada sob a justificativa de promover justiça fiscal e alinhar o Brasil a padrões internacionais, mas acabou criando uma tensão entre arrecadação e constitucionalidade. O impacto imediato recai sobre investidores que, além de pagar mais imposto, precisam lidar com a instabilidade interpretativa do Fisco.
No centro desse debate está o equilíbrio entre a necessidade de arrecadação do Estado e o respeito a princípios constitucionais básicos como capacidade contributiva, legalidade e irretroatividade. Até que o Supremo Tribunal Federal se pronuncie definitivamente, o tema continuará a gerar controvérsia, litígios e oportunidades para rediscutir os limites da tributação no Brasil.
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Publicado em: 2025-10-01
Última modificação: 2025-10-01