David Vinicius do Nascimento Maranhão
A interceptação telefônica é uma das medidas mais invasivas ao direito à intimidade e à vida privada reconhecidos pela Constituição Federal. Por essa razão, o seu uso no processo penal deve ser absolutamente excepcional, restrito às hipóteses em que se revele indispensável à investigação criminal, e sempre precedido de ordem judicial fundamentada.
A simples conveniência investigativa não pode, por si só, justificar a devassa de comunicações privadas. É necessário que o Estado, ao manejar instrumento tão sensível, observe rigorosamente os princípios constitucionais que regem o processo penal democrático. Nesse cenário, impõe-se uma reflexão sobre o papel dos indícios concretos como pressuposto de validade para a decretação da interceptação telefônica.
A interceptação de comunicações telefônicas consiste na captação, sem o conhecimento dos interlocutores, do conteúdo das conversas mantidas via telefone ou outras formas de comunicação similares, com o objetivo de subsidiar investigações criminais. Trata-se de medida cautelar probatória, regida por normas estritas, tanto no plano legal (Lei nº 9.296/96) quanto no plano constitucional (art. 5º, XII, da CF/88).
Por envolver direta violação à esfera da intimidade e do sigilo das comunicações, a interceptação só pode ser autorizada em casos de extrema necessidade, e desde que preenchidos os requisitos legais: i) existência de investigação sobre crime punido com reclusão; ii) indícios razoáveis da autoria ou participação do investigado; iii) demonstração da imprescindibilidade da medida; e iv) autorização judicial fundamentada.
A autorização judicial para interceptação não pode se basear em meras conjecturas ou impressões subjetivas da autoridade policial ou ministerial. O julgador, ao deferir o pedido, deve realizar juízo de admissibilidade fundado em elementos objetivos e concretos, os quais demonstrem a probabilidade da ocorrência de um delito grave e da vinculação do investigado à sua prática.
Essa exigência decorre diretamente do princípio da proporcionalidade. Não se pode admitir que um direito fundamental — como o sigilo das comunicações — seja restringido com base em hipóteses abstratas ou na tentativa de descobrir se alguém, eventualmente, está envolvido em atividades criminosas. O Poder Judiciário, como guardião das liberdades individuais, deve funcionar como verdadeiro filtro contra abusos do aparato investigativo do Estado.
Além da existência de indícios concretos, a interceptação deve ser subsidiária. Isso significa que só pode ser empregada quando não for possível obter a prova de outra forma menos invasiva. A legislação brasileira (Lei nº 9.296/96, art. 2º, II) é categórica ao afirmar que a medida será inadmissível se houver outros meios de prova disponíveis.
Esse requisito reforça o caráter excepcional da interceptação. Em investigações nas quais existam elementos suficientes para a produção de provas por testemunhas, buscas e apreensões, análises financeiras ou outras técnicas investigativas menos gravosas, a interceptação não deve ser autorizada. Sua função não é facilitar investigações genéricas, mas sim suprir lacunas probatórias em casos complexos, sobretudo aqueles envolvendo organizações criminosas estruturadas, cujo modus operandi se baseia justamente na clandestinidade e no sigilo das comunicações.
A interceptação telefônica jamais pode ser usada como instrumento de exploração investigativa à deriva, sem direção definida, com o objetivo de se descobrir, aleatoriamente, algum indício de crime. Essa prática, conhecida como fishing expedition, viola frontalmente os princípios da legalidade, da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência.
A investigação criminal deve ter objeto determinado e hipóteses investigativas pré-definidas, sustentadas por elementos informativos prévios. Se a interceptação for decretada sem base fática concreta, corre-se o risco de legitimar práticas autoritárias, transformando o Estado em vigilante permanente da vida privada dos cidadãos.
Toda interceptação telefônica realizada sem a devida observância dos requisitos legais é considerada prova ilícita, nos termos do art. 157 do Código de Processo Penal. Mais ainda: contamina também as provas subsequentes que dela derivarem, configurando o fenômeno da árvore dos frutos envenenados (fruits of the poisonous tree).
Essa consequência revela a gravidade da violação aos requisitos legais. A obtenção da prova por meio ilícito deslegitima toda a persecução penal, maculando o processo de forma insanável. Não se pode admitir que um processo iniciado com base em medida invasiva ilegal produza efeitos válidos no plano da condenação criminal.
Diante das graves consequências jurídicas e sociais da interceptação telefônica, é imperioso que sua utilização seja precedida de prudência e rigor técnico. Cabe à autoridade policial justificar minuciosamente a necessidade da medida, detalhar os indícios que a sustentam e demonstrar que todos os meios ordinários de investigação foram tentados ou se mostram inviáveis.
Ao Judiciário, por sua vez, compete realizar controle substancial da legalidade do pedido, exigindo robustez argumentativa e evidências mínimas de materialidade e autoria. O deferimento da interceptação não pode se tornar um ato protocolar, nem tampouco ser chancelado com base em juízos de conveniência investigativa.
É firme a jurisprudência do STJ no sentido de que, em se tratando alegada violação ao art. 2º, II, da Lei nº 9.296/96, cabe a defesa demonstrar se realmente haviam outros meios de provas disponíveis para a apuração dos fatos ao tempo do requerimento da quebra do sigilo telefônico, o que não ocorreu na espécie (STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp n. 830.337/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 6/3/2019).
A interceptação telefônica demanda ordem judicial fundamentada em elementos concretos que justifiquem sua necessidade, bem como que afastem a possibilidade de obtenção das provas por outros meios. STJ. 6ª Turma. AgRg no RHC 183.085-SP, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 16/4/2024 (Info 809).
A interceptação telefônica é uma medida útil e, em muitos casos, imprescindível ao combate ao crime organizado e às formas mais sofisticadas de delinquência contemporânea. Contudo, seu uso indiscriminado fragiliza o Estado Democrático de Direito, compromete direitos fundamentais e mina a legitimidade das instituições.
O processo penal brasileiro, fundado em garantias constitucionais, exige que a restrição a direitos seja sempre a última medida, nunca a primeira. Por isso, a existência de indícios concretos e a demonstração da imprescindibilidade da medida são requisitos inegociáveis para a sua validade.
A cultura da legalidade e do respeito às liberdades civis deve prevalecer sobre a lógica do resultado a qualquer custo. A eficiência no combate ao crime não pode servir de pretexto para a erosão de direitos, sob pena de se substituir a justiça pela arbitrariedade.
Autor: MARANHÃO, David Vinicius do Nascimento, advogado criminalista, especialista em ciências criminais, atuação em causas criminais complexas em todo o país. Telefone de contanto: (61) 99426-7511 e E-mail: nascimentopeixotoadvogados@gmail.com.
Publicado em: 2025-04-01
Última modificação: 2025-04-01