David Vinicius do Nascimento Maranhão
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), expresso no REsp 1406487/SP, traz à tona uma importante distinção no tratamento das dívidas oriundas de jogos de azar. A decisão, que envolveu a análise de uma dívida de jogo contraída em uma casa de bingos, destaca três categorias jurídicas de jogos: jogos proibidos, jogos tolerados e jogos legalmente permitidos. Apenas as dívidas contraídas em jogos legalmente permitidos podem ser exigíveis judicialmente, conforme o artigo 814 e 815 do Código Civil. Essa distinção se torna relevante ao observarmos o cenário dos jogos de azar populares no Brasil, como o jogo do tigrinho.
O Código Civil Brasileiro estabelece, no artigo 814, caput, que "as dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento", salvo se o jogo for legalmente permitido. O artigo 815 reforça essa posição ao indicar que a exigibilidade das dívidas depende da legalidade do jogo em questão. Ou seja, apenas os jogos autorizados por legislação específica podem gerar obrigações juridicamente exigíveis.
Na prática, os jogos de azar, como o jogo do tigrinho, muitas vezes operam em uma zona de incerteza jurídica. A legislação brasileira ainda proíbe a maioria das formas de jogos de azar, exceto loterias e apostas reguladas por lei, como algumas modalidades de bingos e cassinos em tempos passados, quando tinham autorização provisória por liminares.
O jogo do tigrinho, muito popular em certas regiões do Brasil, é uma forma de jogo de azar que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro atual, enquadra-se na categoria de jogo proibido. Não há regulamentação específica que autorize sua prática legal no país. Dessa forma, qualquer dívida contraída em virtude da participação em tal jogo é considerada uma obrigação natural, ou seja, uma dívida moral, mas que não possui exigibilidade judicial.
No julgamento citado, o STJ enfrentou a questão da cobrança de cheques emitidos para saldar uma dívida em uma casa de bingo, que funcionava com amparo em liminares. No entanto, o tribunal deixou claro que o caráter precário dessas liminares não é suficiente para tornar as dívidas contraídas nesses estabelecimentos legalmente exigíveis. A autorização para funcionamento por liminar não transforma um jogo proibido em um jogo legalmente permitido.
Esse entendimento é crucial para aplicação em jogos como o tigrinho, que, por sua vez, não contam nem com amparo provisório de liminares.
Diante desse cenário, a analogia com o caso do jogo do tigrinho e outros jogos de azar proibidos é evidente. As dívidas contraídas em tais jogos não são passíveis de execução judicial, conforme o entendimento do STJ. Mesmo que os participantes voluntariamente emitam cheques ou firmem compromissos financeiros para saldar suas perdas, essas dívidas são tratadas como obrigações naturais, sem exigibilidade judicial.
Isso reflete uma proteção ao patrimônio do devedor, que não poderá ser obrigado a pagar por uma dívida oriunda de atividade ilegal. Por outro lado, há uma expectativa de que a pessoa cumpra o compromisso assumido com base em princípios éticos e morais, ainda que sem respaldo jurídico para cobrança forçada.
Outro aspecto importante levantado no REsp 1406487/SP foi a condição de vulnerabilidade da jogadora, diagnosticada como compulsiva. Esse fator, ainda que não tenha sido determinante para a inexigibilidade da dívida, é um ponto relevante em muitos casos de jogos de azar. A compulsão pelo jogo cria um estado patológico que pode aumentar os danos à pessoa envolvida, reforçando a necessidade de regulamentação e proteção jurídica dos indivíduos vulneráveis a essa prática.
Essa questão é especialmente importante no contexto dos jogos de azar não regulamentados, como o jogo do tigrinho, em que os participantes podem ser expostos a ambientes exploradores, sem a mínima proteção estatal ou regulamentar.
O entendimento do STJ quanto à distinção entre jogos proibidos, tolerados e legalmente permitidos é um marco relevante para a análise jurídica das dívidas oriundas de jogos de azar no Brasil. No caso do jogo do tigrinho e similares, que operam à margem da legalidade, qualquer dívida gerada não pode ser exigida judicialmente, sendo apenas uma obrigação natural. Além disso, o caráter vulnerável de muitos jogadores compulsivos evidencia a importância de regulamentação clara e medidas de proteção para evitar abusos e prejuízos financeiros excessivos.
A decisão do STJ, portanto, reforça a proteção jurídica aos devedores envolvidos em jogos proibidos e abre espaço para reflexões sobre a necessidade de revisão das políticas públicas sobre jogos de azar no Brasil.
Publicado em: 2024-10-14
Última modificação: 2024-10-14